Blog amigos da rainha

terça-feira, 7 de abril de 2009

O Carnaval Visto de Cima, por Camille Paglia

Por Camille Paglia

No clássico O Mágico de Oz, um tornado transporta a Dorothy de Judy Garland do Kansas desolado e preto-e-branco para a maravilhosa, brilhante e multicolorida terra de Oz. Foi exatamente assim que me senti quando, em fevereiro, deixei o céu cinza e a neve da Filadélfia e cheguei ao famoso carnaval de Salvador, na Bahia.

Esse foi meu primeiro carnaval no Brasil. Todo o meu conhecimento do assunto resumia-se ao filme Orfeu Negro, ao qual assisti nos anos 60. Mas era minha segunda viagem a Salvador, onde havia dado uma palestra sobre arte para o projeto Fronteiras do Pensamento, em maio passado. No momento em que cheguei, senti uma estranha magia no ar. Fiquei fascinada pela profusão de igrejas e pelas ruas do histórico Pelourinho e impressionada pela magnífica geografia da cidade — um triângulo envolvido pela baía e pelo mar que me remeteu a Constantinopla, cidade bizantina da arte. Na ocasião, após minha palestra, recebi um presente que literalmente me eletrificou: uma coletânea de DVDs de Daniela Mercury. O resultado disso foram meses de excitante pesquisa sobre a música e a cultura baianas e seu sincretismo entre o catolicismo e o candomblé.

Um antídoto para a insipidez da música e do cinema americano desses últimos 15 anos! Assim, foi com grande prazer que eu tive a oportunidade de assistir ao carnaval 2009 em Salvador. Como convidada especial de Daniela Mercury, tive acesso ao topo de seu trio elétrico, privilégio que ela jamais havia dado a alguém. Essa área onde os dançarinos se apresentam é extremamente alta. Tão alta que todos precisavam se abaixar para passar sob os fios elétricos que cortam as ruas. Este ritual, ao qual me juntei por cinco noites mesmo debaixo de chuva, parecia simbolizar a alta tensão elétrica de Daniela, que merece uma reverência. Ela foi o tornado que me trouxe a Salvador. A heroica energia da sua performance carnavalesca — ela cantou 63 músicas por mais de seis horas com um mero intervalo de 15 minutos — parecia ser uma força sobre-humana emanando da própria natureza.

Do topo do carro, eu tinha uma vista deslumbrante não só de Daniela e seu grupo, mas também da vasta multidão abaixo que se estendia até onde a vista alcançava. O panorama de milhares de jovens rostos radiantes, iluminados pela música do carnaval, era extremamente tocante. Como que do Olimpo, eu vislumbrava os dramas humanos: beijos e abraços, gays ou não; beleza e harmonia multirracial; vivas disputas territoriais entre os vendedores de comidas e bebidas; as dignas intervenções dos amantes da paz — os Filhos de Gandhy —, com suas roupas e turbantes azuis e brancos. Havia a hipnótica ondulação das longas cordas que separam os seguidores do trio do resto do povo — uma arte móvel em si, formando centenas de padrões encantadores. E havia também uma curiosa unidade, quando Daniela pediu aos que vinham à frente do trio que se jogassem para trás e depois para a frente. Assim foi feito, e o resultado lembrou uma tropa de cavalos puxando uma enorme carruagem.

O carnaval de Salvador é tão impressionante e multifacetado que nunca poderá ser completamente documentado. O grande carnaval do Rio de Janeiro, em contraste, tornou-se uma série de painéis para ser vista da arquibancada, como no futebol. Pode ser descrito por câmeras postas em locais predeterminados. Mas o carnaval de Salvador não pode ser realmente fotografado. A cada noite, entre os milhões de foliões seguindo os trios elétricos, há bilhões de interações humanas e um caleidoscópio onírico da arquitetura da cidade que vai se descortinando.

Não há paralelo nos Estados Unidos para a liberdade de movimento do carnaval de Salvador. Dancing in the Street era uma canção clássica da Motown dos anos 60, época em que a música prometia a liberação do conformismo e do puritanismo da década de 1950. No começo, a alegria coletiva parecia possível com os shows de rock nos parques de São Francisco ou com festivais livres como Woodstock. Mas, com a comercialização do rock, grandes shows foram proibidos por causa de incidentes com ferimentos e até morte. O público não podia mais chegar perto dos palcos, pois barreiras foram construídas entre ele e os artistas. Até mesmo as comemorações do Ano-Novo na Times Square, em Nova York, são controladas: por motivo de segurança, as pessoas são confinadas em espaços como currais, separadas por tropas policiais como animais de fazenda. No Mardi Gras de Nova Orleans, a multidão se move livremente, mas as ruas do French Quarter são pequenas e estreitas. Em comparação, no Circuito Dodô, que vai do Farol da Barra até Ondina, por onde Daniela passou, há uma empolgante imensidão em virtude da vista do mar aberto.

O começo da jornada, fazendo majestosa curva de fôlego, saindo da magnífica construção de pedra do século 16, o Farol da Barra, repete a antiga história do Brasil. Enquanto o trio se movia pela imensa multidão, lembrei-me dos grandes triunfos da Roma antiga, recriados na Renascença. Vendo Daniela, cenas de filmes épicos passavam por minha cabeça: Elizabeth Taylor como Cleópatra, envolta em manto dourado, sentada no trono da grande esfinge quando faz sua dramática entrada em Roma; ou Charlton Heston como Moisés, orientando o transporte de pedras colossais em trenós rolantes no filme Os dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille. Em Salvador, no entanto, não é o absolutismo político nem o poderio militar que estão sendo festejados, mas sim a música e a dança — uma supressão da política, como nos tempos das Saturnálias romanas, quando ocorria a inversão dos papéis entre servos e senhores. Percy Bysshe Shelley disse: "Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo". No carnaval, Salvador transforma-se em uma nação da arte, onde quem manda é o artista.

Conforme o trio foi passando pela avenida Oceânica, tive a ilusão de estar em um navio com um mar de pessoas abaixo — uma visão que foi reforçada pela posição de Daniela à frente, como uma figura de proa. De fato, o trio, com seus múltiplos níveis, tem quase o mesmo tamanho de uma caravela portuguesa — navios pequenos e ágeis que exploraram o mundo e integraram a armada dos primeiros europeus que desembarcaram no Brasil, ao sul de Salvador. Ao navegar por diversos gêneros da música e da dança, Daniela incorpora o espírito mercurial e ousado de investigação incansável dos portugueses. Ela já cantou samba-jazz, mas o que faz no trio é barroco — o estilo das antigas igrejas da cidade. Originário da Itália, o barroco, com sua ornamentação e extravagância teatral, funde o êxtase espiritual com o sensual. É uma arte de monumentalidade assertiva — um princípio e uma técnica que poucas mulheres dominam ou mesmo abordam. Samba-jazz é mozartiano — uma sofisticada música de câmara. Mas o trabalho de Daniela no amplificado trio é como uma toccata de Bach ou um oratório de Handel — elaborado, dinâmico e contagiante.

De onde vem essa ambição artística de Daniela? Apesar de ter frequentado a Universidade Federal da Bahia, sua verdadeira escola foi o carnaval de Salvador. Ela é sua cria e sua rainha. As riquezas, variedades e máscaras desse carnaval moldaram sua imaginação, e a magnitude da festa deu a ela uma energia titânica e uma poderosa voz de comando. Em troca, ela ajudou a moldar a forma atual do carnaval — como, por exemplo, o antes controverso uso de instrumentos eletrônicos. O carnaval é, também, a fonte do feminismo brasileiro único de Daniela: ao entrar no mundo masculino dos trios, ela aprendeu a enfrentar e a se alinhar aos homens sem perder sua feminilidade e seu carisma natural. O carnaval fez dela uma gerente, uma empresária e uma comandante.

Orgulhosamente se arrastando pelas ruas, os trios elétricos parecem dragões, enormes lagartos cujos rugidos penetram as colinas antigas nas quais se situa a cidade moderna e geométrica. Do topo do trio, a poderosa vibração de guitarras e tambores parece um terremoto. No convento de São Francisco, no Pelourinho, há uma parede de azulejos com uma imagem de Lisboa antes do devastador terremoto de 1755, causador de incêndios e maremotos. Por meio do casamento do antigo e do moderno — complexos ritmos africanos com alta tecnologia —, os trios de Salvador recriaram Lisboa como capital da arte. E, com ondas elementares de fogo, batizaram os foliões em um oceano de música.

O carnaval de Salvador é uma reunião familiar, uma celebração da genealogia e da colaboração da música baiana. Os astros dos trios conversam animadamente com seus mentores e colegas nas sacadas, improvisam duetos e dão testemunhos de respeito e admiração. (Quando vi os gênios Gilberto Gil e Caetano Veloso cumprimentando Daniela do camarote de Gil, gritei como uma colegial.) A espontaneidade e o dinamismo são agrários e precedem o aprisionamento causado pelo decoro do escritório da moderna burguesia."Salvador!", gritava Daniela do alto do carro, como uma severa sacerdotisa. Ela se dirigia ao povo como se este personificasse a própria cidade. É um relacionamento íntimo que deu a ela sua identidade artística. Mas cada peregrino que vem para o carnaval se torna um cidadão soteropolitano e uma parte da história viva da cidade.

Camille Paglia é professora no Philadelphia College of the Performing Arts, Pensilvânia. É autora das obras Vampes e Vadias (1994), Sexo, Arte e Cultura Americana (1991) e Personas Sexuais (1990). Tradução de Diana Ricci Penteado Aranha.

Fonte: Revista BRAVO! Abril/2009

Nenhum comentário: